quinta-feira, 21 de maio de 2009


EÇA DE QUEIRÓS,
por Carlos Reis


Tendo nascido na Póvoa do Varzim (25 de Novembro de 1845), Eça de Queirós desenvolveu a sua vida literária entre meados dos anos 60 e 1900, quando, a 16 de Agosto, morreu em Paris. Nesse lapso temporal, Eça marcou a cena literária portuguesa com uma produção literária de alta qualidade, alguma dela deixada inédita à data da sua morte.
Formado na Coimbra romântica e boémia dos anos 60, o jovem Eça acolhe o ascendente de Antero de Quental como líder de uma geração de intelectuais abertos ao influxo de correntes estéticas e ideológicas que se projectam na vida literária desses anos e das décadas seguintes: social ismo, realismo, naturalismo, etc. (cf. "Um Génio que era um Santo", in Notas Contemporâneas). Logo depois, em Lisboa e em Évora, Eça de Queirós conhece a experiência do jornalismo (n’O Distrito de Évora, na Gazeta de Portugal, onde colabora com folhetins postumamente editados em livro, em 1903, com o título Prosas Bárbaras). A invenção (com Antero e Batalha Reis) da figura de Carlos Fradique Mendes, bem como a composição d'O Mistério da Estrada de Sintra (publicado em cartas, em 1870, no Diário de Notícias, de parceria com Ramalho Ortigão) prolongam ainda o tom e a temática romântica que caracterizam este Eça em tempo de aprendizagem literária. As Conferências do Casino (em 1871 e de novo sob o impulso motivador de Antero) representam, na vida literária de Eça de Queirós e da sua geração, um momento decisivo e de abertura a novos rumos estéticos e ideológicos: relaciona-se essa abertura com a análise e com a crítica da vida pública que As Farpas (1871-72, de novo com Ramalho) haviam iniciado, sob o signo do realismo e já mesmo do naturalismo emergentes em Portugal.
Eça de Queirós, época de O Primo BasílioFotografia, A. desc., 1878in O Primo Basílio, 2ª ed., 1878
O facto de ter saído do país, em 1872, quando parte para o seu primeiro posto consular, em Havana, não impede o romancista de fazer da crítica à vida pública do seu país um dos grandes vectores da sua obra; a verdade, porém, é que Eça se vê confrontado com a distância a que se encontra o espaço português que deveria observar e di-lo numa carta a Ramalho Ortigão, a 8 de Abril de 1878: “Convenci-me de que um artista não pode trabalhar longe do meio em que está a sua matéria artística”. As Cenas Portuguesas (ou Cenas da Vida Portuguesa) em que Eça então trabalhava acabariam por abortar, enquanto projecto de ampla crónica de costumes, envolvendo um conjunto harmonioso de narrativas. Apesar disso, o escritor consagra o fundamental da sua actividade literária, entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80, à escrita, publicação e revisão de romances de índole realista e naturalista: O Crime do Padre Amaro (com três versões, muito distintas entre si, em 1875, 1876 e 1880), O Primo Basílio (1878) e, de certa forma ainda, A Relíquia (1887) e Os Maias (1888), este último um romance em que eclecticamente se fundem temas e valores de feição diversa. Depois disso, Eça privilegia áreas temáticas e opções narrativas nalguns casos claramente afastadas das exigências do realismo e do naturalismo: a novela O Mandarim (1880) fora um primeiro passo nesse sentido, tal como o serão depois, em registos peculiares, A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Ilustre Casa de Ramires (1900) e A Cidade e as Serras (1901), romance que, tal como os dois títulos anteriores, deve considerar-se semi-póstumo. Por publicar ficam tentativas em estado diverso de elaboração: A Capital, O Conde Abranhos, Alves & Cª. e A Tragédia da Rua das Flores, este último um projecto claramente abandonado pelo escritor.
No seu conjunto, a obra queirosiana exibe formas e temas muito distintos, pode dizer-se até que em constante (ainda que lenta) mutação. Essa mutação traduz não apenas um sentido agudo de insatisfação estética (patente também no facto de o escritor ter submetido muitos dos seus textos a profundos trabalhos de reescrita), mas também uma grande capacidade para intuir e até antecipar o sentido da evolução literária que no seu tempo Eça testemunhou e viveu.
Eça de Queirós na sua última residência de Neuilly - c. 1893Fot., A. desc.
Enquanto intérprete do realismo e do naturalismo, Eça tratou de cultivar um tipo de romance consideravelmente minudente, no que toca aos espaços representados e às personagens caracterizadas; entre estas, avultam os tipos sociais, emblematicamente remetendo para aspectos fundamentais da vida pública portuguesa, na segunda metade do século XIX. À medida que as referências realistas e naturalistas se vão diluindo, é a representação da vida psicológica das suas personagens que começa a estar em causa: a articulação de pontos de vista individuais, bem como o tratamento do tempo narrativo constituem domínios de investimento técnico que o romancista trabalhou com invulgar perícia; por outro lado, as histórias relatadas diversificam-se e dão lugar a diferentes estratégias narrativas: narradores de feição testemunhal (n'O Mandarim, n'A Relíquia e n'A Cidade e as Serras) alternam, então, com formas de representação próximas do relato biográfico e do testemunho epistolográfico (n'A Correspondência de Fradique Mendes).
As transformações assinaladas são indissociáveis de balizas ideológicas e periodológicas que, sem excessiva rigidez mas com inegável significado epocal, devem ser mencionadas. Deste modo, en quanto aceita os princípios do realismo e do naturalismo, Eça procura fundar a representação narrativa na observação dos cenários que privilegia; as personagens que os povoam (Luísa, Amaro, Amélia) surgem como figuras afectadas por factores educativos e hereditários que os romances tratam de pôr em evidência, de forma normalmente muito crítica. Já, contudo, a terceira versão d'O Crime do Padre Amaro abre caminho a indagações de natureza histórica e a incursões pelo simbólico. Em harmonia com estas tendências, Os Maias revelam um aprofundamento notório dessas indagações: não é possível entender o trajecto pessoal das personagens mais relevantes sem aludirmos ao devir de uma família que, ao longo do século XIX, testemunha, em várias gerações, os acontecimentos históricos, políticos e culturais que decisivamente marcam a vida pública portuguesa. Para além disso, o protagonista do romance vive o destino trágico que, pela via do incesto, conduz a família à extinção. O que permite remeter esse destino, de novo pelo eixo das ponderações simbólico-históricas, para o plano das vivências colectivas; essas vivências envolvem a geração de Eça e, mais alargadamente, o Portugal decadente do fim do séc. XIX, que é aquele que Carlos da Maia observa em Lisboa, quando por algum tempo regressa, em 1887. Por fim, este Eça é o mesmo que recupera a figura de Carlos Fradique Mendes, fazendo dele não apenas uma manifestação de dandismo, mas também a voz autónoma que valoriza o genuíno e os costumes pitorescamente portugueses, ao mesmo tempo que refuta (a exemplo do que se lerá n’A Cidade e as Serras) os excessos da civilização moderna e finissecular.

O romance A Ilustre Casa de Ramires vem a ser, por um lado, a cedência de Eça àquilo a que chamara “o latente e culpado apetite pelo romance histórico” e, por outro lado, uma nova oportunidade para pensar ficcionalmente a História de Portugal, em tempo de profunda crise institucional, com alcance nacional (Ultimato inglês, 31 de Janeiro, iminência de bancarrota, etc.) Ao mesmo tempo, Gonçalo, protagonista d'A Ilustre Casa de Ramires, faz-se novelista de circunstância e, desse modo, projecta no romance traumas e fantasmas que eram os do próprio Eça (o receio do plágio, as dificuldades da escrita, a sedução pela Idade Média, etc.).
Refira-se ainda que a produção literária de Eça de Queirós não se limitou ao romance, mas estendeu-se também ao conto: em certos contos queirosianos (p. ex.: em Civilização), estão embrionariamente inscritos temas e acções desenvolvidas em romances. Para além disso Eça colaborou em diversas publicações periódicas ou de circunstância (jornais, revistas, almanaques); nalgumas daquelas chegou a manter uma regular actividade de cronista, na qual se surpreende o observador privilegiado e atento à vida política internacional, à evolução dos costumes, à actividade cultural, etc. Foi também por acreditar na capacidade de intervenção destes seus escritos que Eça projectou, fundou e dirigiu a Revista de Portugal (1889-1892). Apesar da vida efémera que teve, a Revista de Portugal conseguiu afirmar-se como uma das mais cultas e elegantes publicações da sua época, buscando superar, com a ajuda de vozes prestigiadas (além de Eça, Oliveira Martins, Antero de Quental, Alberto Sampaio, Moniz Barreto, Teófilo Braga, Luís de Magalhães, Rodrigues de Freitas, etc.), o clima de vencidismo a que o escritor também chegou a aderir.


Bibliografia activa: O Mistério da Estrada de Sintra (Lisboa, 1870); O Primo Basílio (Porto-Braga, 1878); O Crime do Padre Amaro (Porto-Braga, 1880); O Mandarim (Porto, 1880); A Relíquia (Porto, 1887); Os Maias (Porto, 1888); Uma Campanha Alegre (Lisboa, 1890-91); A Correspondência de Fradique Mendes (Porto, 1900); A Ilustre Casa de Ramires (Porto, 1900); A Cidade e as Serras (Porto, 1901); Contos (Porto, 1902); Prosas Bárbaras (Porto, 1903); Cartas de Inglaterra (Porto, 1905); Ecos de Paris (Porto, 1905); Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (Porto, 1907); Notas Contemporâneas (Porto, 1909); Últimas Páginas (Porto, 1912); A Capital (Porto, 1925); O Conde d'Abranhos (Porto, 1925), Alves & Cia. (Porto, 1925); O Egipto (Porto, 1926); A Tragédia da Rua das Flores (Lisboa, 1980). A edição crítica das obras de Eça de Queirós está a ser publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda desde 1992.
Bibliografia passiva: M. Sacramento, Eça de Queirós - uma estética da ironia, 2ª ed., Lisboa, Imp. Nacional-Casa da Moeda, 2002; E. Guerra da Cal, Língua e estilo de Eça de Queiroz, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 1981; A. Machado da Rosa, Eça, discípulo de Machado?, 2ª ed., Lisboa, Ed. Presença, 1979; A. Coleman, Eça de Queirós and European Realism, New York-London, New York Univ. Press, 1980; J. Gaspar Simões, Vida e obra de Eça de Queirós, 3ª ed., Amadora, Bertrand, 1980; A. José Sarai va, As ideias de Eça de Queiroz, Lisboa, Gradiva, 2000; Carlos Reis, Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1984; id. e M. do Rosário Milheiro, A construção da narrativa queirosiana, Lisboa, Imp. Nacional-Casa da Moeda, 1989; id., O Essencial sobre Eça de Queirós, 2ª ed., Lisboa, Imp. Nacional-Casa da Moeda, 2005; Lucette Petit, Le champ du signe dans le roman queirosien, Paris, F. C. Gulbenkian, 1987; I. Pires de Lima, As máscaras do desengano. Para uma abordagem sociológica de "Os Maias" de Eça de Queirós, Lisboa, Caminho, 1987; Alan Freeland, O leitor e a verdade oculta. Ensaio sobre Os Maias, Lisboa, Imp. Nac.-Casa da Moeda, 1989; A. Campos Matos (coord.), Dicionário de Eça de Queiroz, 2ª ed. e suplemento, Lisboa, Caminho, 1992-2000; Fagundes Duarte, A fábrica dos textos, Lisboa, Cosmos, 1993; Carlos Reis (coord.), Eça de Queirós. 1845-1900 [documento electrónico: http://purl.pt/93], Lisboa, Bib. Nacional, 2000.


Isabel Rosete

(investigação)

4 comentários:

  1. um blog a ter em muito boa conta.

    cumprimentos

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  2. A Alma humana
    Destituiu-se de si.

    Paira na bruma
    Das tardes cinzentas,
    Sem tranquilidade,
    Sem paz.

    Percorre
    Os infinitos caminhos do Mundo,
    As estradas vazias,
    Sem orientação determinada.

    Procura
    O Paraíso perdido
    Em todos os corpos outros,
    Sem saber qual é a sua linhagem.

    Ofusca-se
    Com os raios do Sol,
    Na exuberância do seu ser,
    Na incomensurabilidade
    Do seu brilho e esplendor.

    Vagueia
    Pelas ondas imensas
    Do mar revoltoso,
    Companheiro dos ventos do Norte.

    Oh, ventos malditos,
    Que tudo arrastam,
    Movem
    E comovem.

    Oh, ventos daninhos,
    Que tudo agitam
    Abalam
    E deslocam…

    No intenso redemoinho universal,
    Da Vida que rodopia,
    Em todos os espaços sombrios,
    Por todos os lugares indescritíveis.

    E a Alma humana permanece,
    Sobrevive, assim,
    Apesar de todos os infortúnios.

    Encontra-se por aí,
    Algures,
    De novo, destituída de si.

    Isabel Rosete

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  3. Quantos são os mistérios da escrita
    No seio da imensidão
    Do nosso universo linguístico!

    As pausas,
    Os silêncios…

    Sempre as palavras,
    Que nos comovem
    Ou nos fazem explodir!

    Sentimos o enigma do Mundo
    Na sua dis-persão e re-união…

    Uma inquietante estranheza inicial
    Coloca-nos na face dos Mistérios,
    Insondáveis,
    Da Natureza
    E do Homem.

    Ficamos atónitos.
    E o silêncio regressa,
    Apesar de toda a prosologia.

    Iniciamos a próxima viagem,
    Em todo o nosso peregrinar,
    Tão genuíno quanto o canto dos pássaros.

    A todo o instante,
    Fazem escutar,
    Quão maravilhosas Criaturas,
    Os seus hinos de celebração da Terra,
    Que sempre acolhe os nossos passos,
    Tão pesados quanto a massa do Mundo.

    Caminhamos para uma nova era,
    E nunca sabemos
    Para onde correm os rios!…

    Os rios do “obscuro” de Éfeso,
    Que nos doou essa maravilhosa metáfora
    Da sucessiva transformação
    De todas as coisas…

    Sempre outras…
    Sempre outras…

    Sempre as mesmas…
    Sempre as mesmas…

    Num eterno retorno,
    Marcado pelos traços
    Da esmagadora infinitude.

    Isabel Rosete

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  4. A pujança da escrita
    Enobrece-me a Alma.
    Torna-a sensível,
    Sempre desperta
    Para os infinitos traços
    Dos exasperáveis actos dos Homens
    Que avançam,
    Sem auto-crítica,
    Sem racionalidade…

    Isabel Rosete

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